Entendendo o documentário Harry & Meghan (Netflix) – Episódio 1

A série de documentários ‘‘Harry & Meghan’’ é uma produção estadunidense da Netflix, que visa mostrar o outro lado da história desse conhecido casal real. A série documental conta com 6 episódios e aspira adentrar no relacionamento do casal, desde a época do namoro, até a decisão mútua de deixar de trabalhar como membros ativos da família real britânica.

Desde novembro de 2016 – com o anúncio de seu namoro com a atriz estadunidense Meghan Markle – Harry enfrentou uma enxurrada de críticas da mídia britânica (e mundial). Sendo taxado de precipitado e até mesmo de inconsequente, o namoro do príncipe Harry com uma atriz estrangeira negra e divorciada, foi altamente criticado no Reino Unido.

Historicamente falando, é notória a aversão dos britânicos (especialmente os ingleses) para com consortes reais estrangeiras. Desde a Idade Média, princesas estrangeiras que seguiam rumo à Inglaterra para desposar seus príncipes, eram maltratadas e vistas com desconfiança pelos olhares locais. Agora, em pleno século XXI, com um Brexit reforçando a – aparentemente – inesgotável xenofobia britânica, o cenário não parece ter mudado tanto. E Meghan – independentemente de todas as polêmicas envolvendo seu nome – segue sendo uma mulher estrangeira, que se casou com um príncipe inglês; e acreditem, isso conta muito dentro desse cenário que será analisado por mim no decorrer de meus textos aqui para a página.

O primeiro episódio da série ‘‘Harry & Meghan’’ foi lançado recentemente, no dia 8 de dezembro de 2022, já contemplando diversas controvérsias no Reino Unido e Estados Unidos. Determinada em desmentir o casal e todos os argumentos por eles elencados na série, a imprensa chegou até mesmo a ir atrás de porta-vozes da Casa Real Britânica, a fim de descobrir se a família real havia ou não sido anteriormente contatada pela produção do documentário – conforme fora anunciado pela Netflix. Em realidade, até o próprio pai de Meghan foi questionado pela mídia britânica e estadunidense acerca de tal documentário – dizendo em uma entrevista recente que, ao contrário do que fora dito na produção, ele nunca renunciou à sua filha e continua sendo seu pai.

Vindo da imprensa (especialmente a britânica), isso é mais do mesmo. Sabemos que, em se tratando de Harry e Meghan (principalmente de Meghan) todas as suas falas e posicionamentos são constantemente dissecados pela imprensa e obviamente, nesse caso não seria diferente.

Polêmicas à parte – e acreditem, essa série documental está recheada delas – minha ideia com esses textos, é tentar compreender um pouco melhor as intenções e táticas utilizadas por Harry e Meghan nessa produção, bem como o dito ‘‘lado deles da história’’.

Começo dizendo que, como historiadora que sou, meus textos não se dedicarão ao serviço de prestar deferência à monarquia britânica ou aos seus membros, afinal, não sou uma Royal Watcher; essa não é minha função aqui. Minha intenção, através dessas linhas que se seguirão, é utilizar meu rigor de ofício, a fim de tentar compreender o modo como os membros da realeza e a mídia se projetam ao grande público nesse conflito e com isso, fazer com que vocês compreendam um pouco melhor esse embate político-midiático-familiar por eles encabeçado em pleno século XXI.

Então vamos lá…

É complicado tentar encontrar quem está ‘‘certo ou errado’’ nesse tribunal moral travado pelo casal Harry e Meghan, pela imprensa e (sim, acreditem) pela Família Real. Não nos cabe esse papel. Não somos juízes da moral alheia, tampouco estamos nós mesmos isentos de nossos próprios erros. Assim sendo, já me adianto em dizer que, não perderei tempo colocando mais lenha na fogueira desse circo midiático em torno desse casal, e sim, analisando a série per se.  

Minha intenção é meramente a de postar textos aqui no site, acerca das minhas percepções ao assistir essa série de documentários. Inicialmente, poderão notar que minha análise se voltará mais à estrutura da obra de um modo geral e em como esse casal resolveu se projetar para a grande mídia – afinal, já sabemos como a grande mídia os projeta para as pessoas, uma vez que, essa série em questão, tem como intenção inicial, justamente fornecer uma resposta aos ataques a eles desferidos pela imprensa.

Harry & Meghan – Quem conta um conto, aumenta um ponto?

Para a grande mídia, Harry e Meghan são um casal que vive de extravagâncias frustradas, aparências e mentiras. Desde a época do anúncio de seu noivado com Harry, a ex-atriz estadunidense é sempre mostrada como sendo uma alpinista social, que pavimentou seu caminho até ser, por fim, notada pelo príncipe inglês em questão. Nessa narrativa, o modo como Harry é retratado, muitas vezes, transita entre o ”mimado e alienado príncipe da família real britânica”, o ”igualmente calculista marido de Meghan” e até mesmo, o ”tolo cego e apaixonado por sua bela e sexy atriz estrangeira’’. Sabemos também que, para os tabloides britânicos, Meghan é uma ”cópia malsucedida de Kate Middleton”, que não perdoa a família real por ”não tratá-la com a deferência e atenção que esta julgou/julga merecer”.

Com isso em mente, ligo o computador e acesso à Netflix. Em seguida, o documentário começa a aparecer na minha tela. O banner em preto e branco já me fornece algumas dicas do que devo esperar: Sobriedade. Embora trate de escândalos e temas polêmicos, o casal pretende se colocar em uma posição aparentemente ponderada e comedida. As fotos de divulgação mostram imagens oficiais de Harry e Meghan, sempre em caráter de cumplicidade – olhando um para o outro e sorrindo naturalmente (vide imagem em destaque). O recado está dado: Não são eles quem vão atacar; eles vão se defender de seus algozes.

A objeto da narrativa desse episódio por fim aparece: A Mídia. Nada surpreendente, como puderam ler até aqui. Nesse ponto, é necessário frisar que, Harry realmente fez escola com sua mãe, Diana. Só mesmo um filho de Diana seria capaz de usar a mídia a seu favor para criticar os atos de quem? Da própria mídia!

Diana sempre soube manejar o leme da mídia a seu favor. Em realidade, inicialmente, ela soube alimentar bem essa indústria, até o momento em que perdeu o controle e foi engolida por esse mesmo ‘‘monstro’’ que outrora saciou. Desde os trajes que usava, até o modo como falava e com quem falava; seu melhor ângulo; por onde poderia entrar e sair para ser mais notada; quais locais deveria frequentar; tudo isso fora muito bem pensado por ela em vida. Nada passava desapercebido. E não apenas isso; Diana tinha muitos amigos influentes dentro de tabloides mundialmente famosos – bem como repórteres, editores e jornalistas. Ela sabia quando e como deveria posar para a mídia e compreendia como se portar a fim de se mostrar como vítima e não como alguém em posição de ataque ou liderança.

Não se enganem, a própria imagem da ”mulher humilde que se casou por amor com seu príncipe encantado” foi uma construção social inicialmente forjada pelo próprio pai de Diana, John Spencer, na ocasião do discurso dado por ele no casamento da filha. Mas, ao contrário das palavras de John, sua filha não era uma plebeia encontrando seu príncipe encantado no que seria chamado de ”o casamento do século”. O enlace político de Diana e Charles estava longe de ser uma história de amor – como hoje sabemos bem.

A princesa cansada. Foto de Diana grávida de William, tirada pelo fotógrafo Tim Graham. 4 de novembro de 1981. Fotos de Diana em posição de vulnerabilidade eram comuns em períodos onde a princesa necessitava mostrar ao povo fragilidades ou turbulências pessoais – seja em seu relacionamento com Charles, seja com a Família Real.

Mas, seja através do discurso de John ou do modo de se portar de Diana, a verdade é que, sempre que se sentia acuada ou injustiçada dentro da mídia ou até mesmo por membros da Família Real, os tabloides eram o refúgio que ela usava para se projetar para o povo. Por isso, novamente, não é de se estranhar que, décadas após a morte de Diana, Harry venha à mídia fornecer ao povo um registro detalhado de sua vida, como sua mãe fizera tantas vezes outrora – seja com entrevistas coletadas pelo jornalista Andrew Morton, seja na entrevista para o Panorama, ou através de fotos posadas e pensadas a fim de mostrar melhor o ‘‘seu lado da história’’.

Depois – de um modo mais amplo – quando a mídia que outrora alimentou começou a sufocá-la, a narrativa de: ‘‘Foi tudo graças à mídia’’ ou ‘‘a mídia destruiu minha vida’’ passou a ser usada por Diana a fim de poder se defender de acusações – algumas verdadeiras, outras falsas – feitas contra ela. Foi uma narrativa confortável para ela e vem sendo, obviamente, para Harry (e até mesmo William algumas vezes) porque é um modo de atacar inimigos maiores sem dizer propriamente seus nomes.

A mídia podia ser, muitas vezes, um alvo genérico utilizado a fim de alcançar objetivos maiores. Como sabemos – especialmente durante a entrevista de 1995 para o Panorama – Diana costumava expor muitas críticas e informações sigilosas sobre a realeza, sempre direcionando seu ataque geral à perseguição da mídia ou a culpando quando tal tentativa era malsucedida. A própria entrevista ao Panorama, na época, foi vista como sendo escandalosa, precipitada e imatura por parte de Diana e assim, ela culpou a mídia por tal fracasso, dizendo que a enganaram para que ela aceitasse concedê-la. É, no entanto, necessário frisar que, de fato, o jornalista da BBC, Martin Bashir, enganou Diana para que ela sentisse que, na época, seria traída através de um vazamento de informações vindo do Palácio de Kensington, resolvendo, portanto, dar a entrevista como um meio de se precipitar à tais ataques. No entanto, também é igualmente correto mencionar que, caso a entrevista tivesse sido bem-sucedida e seu ataque contra alguns membros da realeza tivesse sido um sucesso, não haveria motivos para Diana (ou até mesmo seus filhos atualmente) achar culpados nessa história toda. Em suma: Os culpados foram encontrados porque foi mais conveniente.

Ainda no que tange a questão de ”ataques à realeza mascarados como sendo apenas para a mídia”, ao dizer no documentário que: ‘‘Isso sempre foi muito maior do que nós’’, o próprio príncipe Harry nos fornece uma dimensão pessoal acerca de sua posição como membro da família real britânica. Nessa parte, ouso mencionar a importância de saber ler às entrelinhas. À primeira vista, vocês até podem achar que tal frase dita por ele na série, fora somente direcionada à mídia, mas em realidade, ela cabe (igualmente e perfeitamente) às cenas onde vemos Harry narrando sua infância sufocada por protocolos reais e seu sentimento pessoal de incapacidade para lidar com tais agruras referentes ao seu berço – os tantos protocolos; a postura social; o silêncio; a requerida omissão do sentimento, tudo sempre mascarado em nome das aparências… sim… isso sempre foi muito maior do que eles!

É, portanto, sensato ponderar que, embora tal documentário obviamente tenha como alvo principal a mídia, ele não visa se proteger de/atacar somente ela. Seria inocente demais de nossa parte, ignorar a realeza britânica como sendo o alvo secundário e muito bem camuflado e direcionado dessa produção.

É possível notar também, como a narrativa do primeiro episódio visa colocar Harry quase como sendo um discípulo de sua ‘‘incompreendida e injustiçada mãe”. Afinal, não seria ele ”tão filho de Diana, que tomaria para si essa mesma pesada carga que ela outrora carregara em vida”? Harry, um homem perdido diante de um cenário incapaz de alterar, tentando a todas às custas, manter sua família íntegra e sã diante de todos os conflitos impostos a ela. Isso não lembra o discurso de alguém? Sim, a partir daqui já percebemos que Harry e Meghan querem ser vistos como Diana outrora também quis. Incompreendidos, perdidos, apaixonados, intensos e acima de tudo, solitários.

Construindo uma imagem através dos detalhes:

A partir desse ponto do texto, não seria nada surpreendente saber que a trilha sonora de tal documentário também foi escolhida a dedo, não é mesmo!? Desde o anúncio do noivado, Harry e Meghan também buscam mostrar para a mídia que querem ser vistos como um casal que se ama profundamente e obviamente, por esse motivo, a própria trilha sonora desse documentário busca nos dizer exatamente isso.

Novamente, não há um ponto sem nó nessa série, para quem sabe ler nas entrelinhas. Entre as músicas tocadas, podemos citar Pledging My Love, You’re All I Need to Get By e Stand By Me. Essas músicas – cantadas por artistas estadunidenses como Marvin Gaye, Tammi Terrell e Otis Redding – ajudam a criar esse pano de fundo perfeito de uma ”família amorosa e sólida, que apenas quer se manter unida diante das turbulências que estão fora de seu controle”.

O próprio refrão da música ‘’You’re All I Need to Get By’’ tocada na série, diz tudo:

”Joguei fora meu orgulho; vou me sacrificar por você; dedico minha vida a você…’’

Nesse primeiro episódio, conhecemos um pouco mais o casal; é como se, através da minutagem, fôssemos nos vendo por entre suas angústias narradas em seus vídeos caseiros. O documentário – que estreou às pressas devido à morte de Elizabeth II – anseia em contar esse outro lado da história, aquele que, segundo o casal, foi omitido devido um ataque midiático cruel. E conforme o episódio 1 se desenrola, vemos não um duque e uma duquesa – com ares sisudos e que pouco se tocam ou demonstram afeto em público – e sim, um casal. Aqui, não vemos a Casa Real, ”A Firma” e todos os seus protocolos, vemos duas pessoas em seu início de vida juntas; a promessa de uma família. É nesse ponto que as filmagens amadoras feitas por eles, seguidas de frases como ‘‘estou nervoso’’, ‘‘não sei o que falar’’ou ‘‘estou preocupada’’ passam a ser mais comuns. Aqui são eles saindo da pretensa imagem de perfeição imposta pela realeza, e entrando em nosso mundo; o mundo real. Com isso, eles nos mostram menos as caricaturas ostentadas por membros da realeza como William e Kate; Elizabeth II e Charles, e mais os seres humanos imperfeitos por trás delas, suas vítimas.

Parte de seu mundo:

A base narrativa geral desse primeiro episódio, se debruça em como essas duas pessoas, de mundos tão diferentes, se tornaram o casal que vemos hoje. A narrativa, portanto, se inicia com Harry explicando o quão pouco Meghan conhecia/sabia sobre ele ou sobre a realeza, antes de resolver fazer parte da ”Firma”. Ele então se estende explicando que, mesmo estando bastante alienada de tal contexto/cenário, Meghan abdicou de sua liberdade e sacrificou sua própria carreira em ascensão para estar ao seu lado em seu mundo.

Conforme pôde ser visto, a ideia é mostrar que tudo isso se trata de uma história de amor e que sempre se tratou. E para suportar tal narrativa, o episódio retrata Meghan como sendo o exato oposto do que a mídia costuma dizer que ela é. Menos uma mulher deslumbrada e com sede de fama e de poder, e mais uma pessoa apaixonada, disposta a abrir mão de tudo por quem ama. Assim sendo, os tantos ataques sofridos por Meghan passam a ser apenas mais uma dessas provações que ela teve/tem de enfrentar desde o momento em que decidiu adentrar no mundo de seu marido.

Para completar a narrativa romântica de abdicação, Harry fala acerca de sua própria renúncia pessoal, a fim de entrar para o mundo de sua esposa. Não curiosamente, ao falar sobre o mundo de Meghan, a câmera corta para imagens dela em sua casa em Montecito – CA, alimentando as galinhas em um poleiro. No que tange a construção de uma imagem pública de destaque, tudo foi muito bem calculado e pensado. Afinal, toda a ideia e construção desse documentário parte da perspectiva de trabalhar narrativas. Por conseguinte, o choque visual e a absorção dessas histórias são elevados quando notamos esses detalhes com maior atenção.

Ainda sobre construções de imagem e narrativas, a intenção do episódio foi mostrar o casal como sendo composto por opostos complementares. Harry veio de um berço de ouro, sendo Meghan, seu extremo oposto. A ex-atriz foi retratada como uma mulher de vida simples, pacata e sem luxos. Toda essa narrativa é muito interessante, não fosse o fato de Meghan não ter sido no passado, exatamente o que se entende por uma ‘‘garota do campo’’ – e não há problema nenhum nisso, devo frisar.

Todos sabemos que Meghan nasceu em um distrito de San Fernando Valley, um condado urbano de Los Angeles. Essa região é conhecida por seus estúdios de cinema – como Warner Bros. Studios e Walt Disney Studios. O local passa longe de ser uma pacata e idílica região dos Estados Unidos. Sabemos também que Thomas Markle, o pai de Meghan, trabalhou como diretor de fotografia e iluminação em produções famosas (como por exemplo, ”Eu, a Patroa e as Crianças”), tendo inclusive recebido um Emmy por isso. Já sua mãe, Doria Ragland é uma instrutora de Ioga e Assistente Social. Não; ao contrário do que o episódio quis nos mostrar, Meghan não era uma garota do campo. Ela cresceu em Los Angeles, tendo frequentado uma boa escola local, a Hollywood Schoolhouse. E claro, todos sabemos que, depois disso, ela se tornou uma atriz mundialmente conhecida pela série estadunidense Suits. Sua vida – especialmente depois de adulta – tinha muito mais a ver com um episódio de ”Friends” (no que tange brunchs com amigas em Nova York e noitadas em Hollywood), do que com uma bucólica vida a lá ”Anne with an E”.

Não me entendam mal, com isso, não estou negando que Meghan e Harry tenham sido atacados pela mídia; isso é inquestionável – especialmente no que tange Meghan, vítima de uma mídia extremamente misógina e racista. A mídia tem sim culpa nessa história (e não somente ela, como conseguimos ver no decorrer desse texto). Meu desconforto salientado nos parágrafos anteriores, tem menos a ver com a tentativa deles de mostrar o dito ”lado deles da história” e mais com essa dicotomia forçada; essa narrativa polarizada sempre partindo de ambos os lados. Porém, uma vez que a mídia também os trata de modo dicotômico, não teriam eles o direito de atacar com as mesmas armas? Fica a questão para mim e para vocês que estão lendo esse texto.

Mas, voltando à analise do episódio. Nesse ponto da produção, eis que Meghan defende seu próprio documentário dizendo que, ‘‘Se sua história é contada por todo o mundo e pela perspectiva de pessoas que nunca outrora a conheceram, nada melhor que ela mesma contar sua história’’ não é mesmo? Bom, como historiadora que sou, acho tal afirmação, no mínimo, controversa; perigosa.
Mas o que ela quis dizer com isso? Por acaso, que a história de alguém só pode ser contada por quem a viveu em primeira pessoa?

Novamente, devo dizer que entendo o ponto (leigo) de Meghan e sua intenção em ser a narradora de sua própria história, porém, creio ser uma constatação um tanto perigosa, já que sabemos que sua narrativa é enviesada a fim de, obviamente, retratar apenas o que ela e Harry querem mostrar. Afinal, é natural que, ao contarmos nossa própria história para os outros, tenhamos em mente exatamente como queremos contar, para quem contar e o que contar. Em suma, é fácil esconder alguns esqueletos no armário quando somos nós quem estamos abrindo o livro de nossas vidas para o mundo.

E nessa versão Sussex de mundo, eis que então a narrativa do documentário passa a sofrer leves alterações, fazendo com que o expectador possa se sentir quase como o psicanalista que analisa os casais apaixonados contando suas trajetórias, no conhecido longa-metragem de 1989: ‘‘Harry e Sally – Feitos Um para o Outro’’. Sem exageros, nessa parte do episódio, a produção entrega a mesma perspectiva de câmera, mesmos takes, mesma dinâmica, e arrisco dizer: mesmas atuações do longa acima citado. O tom, de um modo geral, é leve, divertido e revigorante – nos mesmos termos que Meghan diz ter visto Harry quando se encontraram pela primeira vez, reforçando a narrativa romântica e quase ensaiada do documentário. Mas aí fica a questão: estamos vendo histórias reais ou contos de ficção? Como disse, é fácil saber o que mostrar e como mostrar quando somos nós os narradores de nossas histórias.

The Lioness Cub:

Mais adiante no episódio – já superando a estranheza do pseudo-trailer de filme de comédia romântica dos anos 80 – Harry volta para o tópico Diana – figura presente em todo o documentário. Ele fala sobre como a mãe sempre tomou suas decisões com o coração. É claro, devemos nos despir do rigor analítico aqui, afinal, trata-se de um filho falando de sua falecida mãe. A narrativa exposta por Harry nessa parte do documentário, é puramente fruto da admiração e idealização de um filho pelos ditos feitos de sua progenitora. É bonito, carregado de sentimento, mas em muito inverossímil. Digo isso porque, é de comum conhecimento que, muitos dos passos de Diana – antes e depois de entrar ‘‘na Firma’’ – foram muito bem calculados. Conforme mencionado anteriormente, desde sua imagem pessoal – friamente construída por designers de moda renomados no mundo inteiro – até seu jeito, muitas vezes coquete de aparecer diante das câmeras (como se não soubéssemos que Diana não só estava habituada às mesmas, como também sabia exatamente por onde entrar ou sair de locais, a fim de ser ou não notada por elas) eram milimetricamente pensados por ela e pelas pessoas de seu meio.

E creio que a frase que Harry diz depois disso, sintetize bem, não só como ele quer ser visto, mas como quer ser lido em todo esse primeiro episódio (senão em todo o documentário):

‘’I am my mother’s son’’/ ”Eu sou o filho de minha mãe.”

Sim; com esse documentário, Harry conseguiu provar que definitivamente o é. Mas a análise parte menos de um viés amoroso acerca de um suposto legado entre mãe e filho e mais sob um viés prático da coisa. Entre erros e acertos, o saldo final da imagem de Diana deixada para a mídia e para o povo, foi positivo. E Harry é o filho de sua mãe, logo, ele busca, entre trancos e barrancos, trilhar esse mesmo caminho.

Conforme mencionado anteriormente, a relação de Diana com a mídia sempre foi ambígua. Ela usava a mídia e gostava dela, mas ao mesmo tempo, se sentia prisioneira, ansiosa e angustiada por ela. Por muitos anos, Diana alimentou a mídia e pessoas dentro dela; e essa relação foi proveitosa sempre que ela precisou mostrar seu lado da história para o mundo – especialmente durante seu casamento com Charles. No entanto, a mídia não é alimentada apenas quando querem; ela sempre precisa ser alimentada.

E aí chegamos ao final do episódio. Aqui conseguimos ver o assédio que a família real sofria da imprensa. Em uma das cenas, Harry lembra de sua infância e diz que muitas vezes foi obrigado a sorrir enquanto fotógrafos tiravam fotos dele em momentos que deveriam ser lidos como privados e de família. Um dos ápices mostrados no episódio – e que nos ajudam a compreender os momentos em que Diana perdia o controle do chamado ‘‘monstro midiático’’ –  foi um vídeo onde ela aparece de férias com os filhos; eles estão fazendo uma refeição em uma estação de esqui. Nesse momento, já sem paciência, Diana se levanta do lado deles e vai falar com os fotógrafos presentes no local. Com a voz branda – uma de suas marcas registradas para com a mídia – ela pede que os fotógrafos vão embora, pois está em um momento privado e de família. O fotografo então, tenta barganhar, pedindo que ela então esquiasse para que ele pudesse fotografá-la antes de sair – algo que ela se nega a fazer. A cena nos mostra que, ao contrário do que Harry pudesse supor, o fotógrafo estava claramente interessado em Diana e não nele ou em William – pois nessa época a figura da mãe estava em seu auge de popularidade mundial. Portanto, o vídeo mostrado no episódio, é um dos exemplos das vezes em que o assédio da mídia saiu do controle de Diana. Afinal, conforme mencionado, ela queria a mídia, mas apenas quando estivesse preparada para se projetar diante dela.

O primeiro episódio da série tem seu encerramento mostrando que o assédio que Meghan sofre da mídia, tem em seu DNA vestígios do outrora sofrido por Diana. Embora seja interessante comparar tais situações, é importante mencionar que tais assédios são completamente diferentes em essência. O assédio sofrido por Diana foi o resultado de uma tentativa, muitas vezes, fracassada de manipular a mídia e não saber lidar com seus efeitos colaterais. O assédio de Meghan, por sua vez, diz mais sobre o fato dela ser uma mulher estrangeira e negra, casada com um membro da família real, do que sobre alguém que jogou o jogo da mídia e falhou. São aspectos completamente diferentes. Harry, como filho de sua mãe, vê em sua esposa uma sucessora do legado de Diana, mas como pudemos ver, em se tratando de mídia, ingleses, assédio e realeza, o buraco é bem mais embaixo…

Texto escrito por Camila Maréga.

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